Capítulo 36
Um Rebelde com Causa
Morreu David Capistrano Filho. No seu velório, na Assembléia
Legislativa de São Paulo, encontrei uma legião dos
seus amigos, emocionados e tristes pela perda. A mãe, com
80 anos, a mulher e os quatro filhos agasalhados pelo carinho
que só a amizade sincera e o respeito pelo falecido transmitem.
Conheci David em 1979, quando assumi a Secretaria de Saúde
do Estado. Era um jovem médico sanitarista designado por
Walter Leser, meu antecessor, diretor do distrito da Vila Prudente.
David era alvo de feroz oposição das forças
políticas que apoiavam o governo e que exigiam de mim a
demissão do diretor.
Mandei verificar sua postura para saber se usava o cargo para
proselitismo. Informaram-me que era um funcionário exemplar,
enfrentando com seriedade as restrições de pessoal
e de instalação e buscando conquistar benefícios
para a população.
Resisti às pressões e o mantive, o que por pouco
não me custou o cargo. Até de comunista fui chamado.
Quando montamos a comissão que elaborou o Plano Metropolitano
de Saúde, ele fazia parte do grupo. Durante os 36 meses
como secretário, aprendi a respeitá-lo. Combativo,
veemente e intelectualmente honesto. Lutava pelo que acreditava,
a sua verdade, mas sabia aceitar a verdade dos outros. Acompanhei
sua carreira como secretário de Saúde de Bauru e
de Santos e ainda como prefeito de Santos.
Durante todos esses anos, esteve na linha de frente das discussões
sobre a reforma sanitária. Sua atuação na
8a Conferência Nacional de Saúde, que serviu de base
ao capítulo de saúde da Constituição,
é reconhecida por todos. Lutou como poucos pela formulação
e pela implantação do SUS.
Teve a coragem de distribuir seringas aos viciados, quando isso
era considerado transgressão legal, e acoplar à
distribuição um rigoroso programa educacional, visando,
principalmente, aos grupos de risco e retirando a cidade do primeiro
lugar na prevalência da AIDS. Implementou, entre tantas
iniciativas, o atendimento domiciliar em Santos.
Voltei a encontrá-lo em 1997, quando ele já havia
deixado a Prefeitura de Santos. Como todo homem honrado, saía
precisando trabalhar para manter a família. Em 1996, ainda
como ministro, implantamos em São Paulo, no distrito de
Itaquera, em parceria com a Secretaria de Saúde e com o
Hospital Santa Marcelina, os programas Agentes Comunitários
e Saúde da Família, que no estado figuraram como
Projeto Qualis.
Posteriormente, já fora do Ministério, nova parceria
se delineava entre a Secretaria Estadual de Saúde e a Fundação
Zerbini. Precisávamos de um coordenador. Busquei e consegui
a participação não só entusiasmada,
mas acima de tudo competente, do David. Com alguns colaboradores
que ele trouxe e com o apoio da Fundação Zerbini,
ele elaborou e implantou na Cachoeirinha, na zona norte, e em
Sapopemba, na zona sudeste, dois módulos do Projeto Qualis.
Não tenho receio de dizer que são modelos para áreas
metropolitanas.
Com seu jeito peculiar e a certeza de quem conhece o rumo e tem
claro o objetivo, atuou de forma convencional e não-convencional.
Resolvia problemas baseado no bom senso e na necessidade. Rompia
obstáculos e antecipava soluções, o que,
por várias vezes, criou conflitos com a burocracia da Fundação,
que não conseguia acompanhar seu ritmo ou entender os seus
motivos. Agia com a pressa dos que entendem já em muito
ultrapassados os prazos para oferecer à população
carente e desassistida algo a que ela tem direito.
Por inúmeras vezes acompanhei-o em visitas aos bairros
e assisti à forma como transmitia entusiasmo aos agentes
comunitários e aos membros das equipes de Saúde
da Família. Aprendi a respeitá-lo cada vez mais.
Via um idealista puro atuando com pragmatismo e se alimentando
dos resultados.
Sentia na pessoa do David que a recompensa do médico não
se media por patrimônio conquistado ou por posição
social, mas pela sensação de que ajudava pessoas
que sofrem a se sentirem melhor. O auge de sua satisfação
foi a alegria que demonstrou quando inaugurou a Casa do Parto
de Sapopemba, em convênio com o Amparo Maternal, proposta
sua, que lhe valeu ser chamado a colaborar com o Ministério,
interessado nessa proposta.
Já alquebrado pela doença, viajava freqüentemente
para ajudar a difundir e a implantar suas idéias. Certa
feita, em Governador Valadares, quase foi vencido, tendo sido
transportado em coma para a Unidade de Fígado do Hospital
das Clínicas. Na ocasião, insisti para que reduzisse
suas atividades, já sabendo que não teria sucesso.
O episódio de sua operação de transplante
do fígado é impressionante. Não tendo entre
os familiares quem lhe pudesse oferecer a doação
e sem condições de aguardar um fígado de
cadáver, eis que alguns amigos se dispuseram a doar parte
do fígado. A escolha recaiu sobre outro David, o Rumel,
que lhe ofereceu, em atitude de solidariedade suprema, a oportunidade
de recuperação.
Depois da dificílima operação, conseguiu
recuperar-se parcialmente. Mas sobrevieram as complicações
que o vitimaram. No seu velório, José Rubem, seu
grande amigo, referiu-se a David como o rebelde com causa.
Na verdade, foi um rebelde lutando incansavelmente contra a injustiça,
executando até a exaustão o possível - e,
às vezes, o impossível -, respeitado e amado pelos
seus subordinados e amigos e aureolado pela pobreza honrada de
quem tinha ocupado cargos importantes sem nunca ter se utilizado
deles para qualquer benefício pessoal.
Perdemos o convívio do David, mas sua imagem há
de perdurar como exemplo e poderoso estímulo a todos que
acreditam que a solidariedade, a fraternidade, o respeito pela
pessoa humana e a eliminacão das desigualdades são,
sem dúvida, o bom combate.
David combateu esse combate. Venceu, como pudemos atestar no seu
velório. Descanse em paz, com a certeza do dever de cidadão
cumprido em sua maior dimensão.
Folha de São Paulo,
17/11/2000

Adib D. Jatene é professor emérito da
Universidade de São Paulo,
foi diretor do Instituto Dante Pazzaneze, diretor da Faculdade
de Medicina e do Instituto do Coração, exerceu os
cargos de Secretário do Estado da Saúde de São
Paulo e Ministro da Saúde. É Diretor Geral do HCor-
Hospital do Coração. O livro reúne as opiniões
e apresenta as análises do Prof. Jatene sobre a Universidade,
o ensino médico, as políticas de saúde e
a prática da medicina no Brasil.
Prof.
Dr. Adib D. Jatene
Presidente do Comitê Técnico Científico da
ASF
EditoraAtheneu
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